“Maria (nome fictício) chegou decidida e cheia de garra. Sentou-se na primeira fila e desde logo sabia ao que vinha. Com 23 anos, solteira, original de uma favela do Brasil. “Iremos começar nossa aula logo que chegue toda a gente!”. De olhar profundo, sorriso no rosto mas misterioso. Algo me dizia que havia ali bem mais do que samba e forró no pé. Chegadas todas as alunas (não haviam homens no nosso curso) e começaram as apresentações formais. Todas cheias de sonhos e ilusões: trabalhar em semanas de moda, trabalhar com noivas, trabalhar em fotografia até que… a Maria diz: necromaquilhagem! Ué, “o que é isso?” perguntamos todas numa só voz.
“Maquilhagem para defuntos!” diz Maria com o seu sotaque do Rio bem marcado.
Tendo visto a nossa cara de espanto e de surpresa, Maria começou a contar a sua história de vida: nascida e criada numa das maiores e mais perigosas favelas do Rio de Janeiro, histórias de balas e de polícia era algo que não lhe faltavam.0
No entanto, o código de honra também imperava na comunidade não ligada ao tráfico. Nesse código de honra, morrer baleado era uma desonra. E foi o que aconteceu com o pai de Maria: morreu com uma bala perdida. Sendo de bala perdida, a morte teria sido acidental e a honra do pai estaria intacta. “Não, é morte desonrosa na mesma!”. Ficamos ainda mais espantadas. Para se ter uma morte e funeral de honra, o corpo não podia ser perfurado intencional ou acidentalmente. Para piorar a situação, a bala havia atingido o pai de Maria no rosto. “E agora? O meu pai sempre foi uma pessoa de bem, trabalhadora e pacata. Iria ter um funeral sem honra, sem dignidade e tudo devido a uma bala perdida! Não podia ser.”
E foi aí que a Maria se lembrou de uma amiga maquilhadora que tinha. Pediu-lhe desesperadamente que maquilhasse o pai, que fizesse desaparecer aquele buraco de bala que iria tornar o pai num “bandido” tudo por causa daquela maldita bala perdida. A amiga aceitou fazer o trabalho. Aliás, já estava habituada a fazer esse tipo de trabalho pelas favelas.
Tanto inocente que morre sem culpa e que merece uma funeral com toda a dignidade e honra, que se tornou banal para a sua amiga maquilhar defuntos. Também ela achava cruel esse código de honra tão restrito. No dia e hora combinados, lá estava ela com o seu kit para maquilhar o pai de Maria. Pediu a toda a família que a deixassem a sós com o defunto. Cerca de 2 horas depois, manda-os entrar.
Foi a histeria total: o rosto do pai de Maria estava perfeito, sem vestígios de bala. Parecia um verdadeiro anjo! Nesse mesmo instante, Maria soube qual seria a sua missão e profissão de vida: ser necromaquilhadora! Essa seria a sua forma de agradecimento por esta arte lhe ter permitido dar ao pai o funeral que ele merecia.
E assim, com esta história trágica, percebemos todo o mistério que envolvia a Maria. Toda a turma ficou sensibilizada e conheceu não só uma realidade diferente como também uma área menos glamorosa mas igualmente importante e necessária da maquilhagem.”
Não é porque a pessoa morre que não pode manter todo o glamour de quando estava viva. Questão de honra, dignidade ou vaidade, não é porque morreu que tem de ter “cara de morta”. A maquilhagem de defuntos pode ser usada em qualquer situação mas é particularmente procurada aquando de mortes por acidentes, mesmo quando há perda de massa óssea.
A este tipo de maquilhagem, junta-se uma outra área: a área de caracterização. Estamos habituados a ver a caracterização mais em televisão e em cinema mas é igualmente usada nestas situações. Embelezar os mortos para que nos lembremos deles no seu expoente máximo.
A morte já é por si só motivo de tristeza, de uma dor sem fim. Perdemos o chão, questionamos o sentido da vida e a existência dos Deuses. Que se alivie a dor mantendo viva a beleza do nosso ente querido.
Espero que tenham gostado deste post em jeito de história.
Façam sempre o que vos deixa feliz!